23 fevereiro 2006

Império da diversidade

Pluralidade é a marca da temporada nacional clássica 2006.

Em um ano marcado por efemérides de grandes compositores – 150 anos de morte de Robert Schumann, 100 anos de nascimento de Dmtri Shostakovich e Radamés Gnatalli e, é claro, os 250 anos de morte de Mozart – é uma grata surpresa o fato da temporada clássica nacional estar caracterizada pela diversidade de compositores e estilos presentes nas mais diferentes salas e teatros do país, apesar de toda as homenagens prestadas aos compositores em questão.

Sem nenhuma atração excepcional, a temporada deste ano é também caracterizada pela regularidade e continuidade do trabalho que diferentes orquestras, teatros e instituições vêm desenvolvendo ao longo da última década. Há, no entanto, dois “aniversariantes” que merecem serem lembrados por suas empreitadas no árido solo da produção musical clássica brasileira.

Um é o Mozarteum Brasileiro, que completa seu jubileu de prata com uma série de concertos internacionais que, além do eixo Rio-São Paulo, alcança também Santos, Ribeirão Preto (SP) e Blumenau (SC).

No norte do país, o Festival Amazonas de Ópera chega em sua décima edição, concretizando um feito sem precedentes, isto é, um evento operístico anual que conseguiu manter sua continuidade através de mudanças de governos, além de ter se tornado uma referência na cena lírica mundial, seja pelo exotismo que uma ópera na floresta amazônica possa vir a inspirar, seja pelo elenco de belas vozes nacionais e internacionais escalados para suas produções. Este ano, sua grande atração é a apresentação praticamente de simultânea de dois “Otellos” (o de Verdi e o de Rossini).

Nas séries concertos internacionais, alguns antigos conhecidos do público brasileiro estão de volta, o que não diminui em nada o interesse de atrações como os Solistas de Trondheim, o violinista Gidon Kremer e sua Kremerata Báltica e o quarteto de cordas Alban Berg, que vale qualquer esforço para ser ouvido ao vivo. No território do ineditismo, as atenções estão voltadas para o notável grupo barroco Les Musiciens du Louvre, sob a regência de Marc Minkowski. No Rio, a Dell’Arte, que junto com o Mozarteum, é responsável pelas principais atrações internacionais na cidade, ainda não fechou sua temporada 2006.

Aliás, o público carioca terá que esperar no mínimo até março para saber a programação de seu Teatro Municipal, bem como da Orquestra Sinfônica Brasileira, já sob a direção artística do maestro Roberto Minczuk. Da mesma forma, espera-se para breve a definição das atrações do Festival de Inverno de Campos do Jordão, dos concertos BankBoston e da edição 2006 do programa “Circulação de Música de Concerto”, da Funarte, que abrange diversos Estados do país. Vale a pena ficar de olho.

Em São Paulo, a OSESP, sob a direção artística de John Neschling, mantém sua excelente e diversificada programação, temperada com diversos regentes convidados e solistas estrangeiros, além de grandes nomes nacionais como Arnaldo Cohen, Nelson Freire e Antonio Meneses.

Por sua vez, o Theatro Municipal de São Paulo alternará entre diversas produções operísticas (já iniciadas em fevereiro com as “Bodas de Fígaro” de Mozart) com uma interessante temporada de concertos sinfônicos, na qual a presença de jovens regentes brasileiros merece ser apreciada com atenção. De sua temporada lírica, o destaque fica mesmo para a estréia mundial da ópera “Olga”, do compositor brasileiro Jorge Antunes, baseada na vida da ativista política Olga Benário Prestes.

Mais do que nunca, a música de nosso tempo é a grande ausência de todas temporadas, que na melhor das hipóteses terá apenas inserções isoladas de arte contemporânea, tal como a estréia brasileira da obra “Hymen” de Karlheinz Stockausen no Municipal de São Paulo. No mais, só resta esperar que o Festival de Música Nova traga alguma brisa de modernidade para ares tão conservadores.

Apesar de toda riqueza da temporada, a grande novidade clássica de 2006 não está no teatro, mas sim nas bancas de jornais. Trata-se da versão brasileira da conceituada revista francesa de música e discografia clássica Diapason, que passará a circular bimestralmente a partir de março. O surgimento Diapason Brasil, como já está sendo chamada nos bastidores, é um claro sinal da consolidação de uma faceta da cultura musical brasileira que só tende a crescer, apesar da miopia dos “donos da cultura” brasileira.


Destaques da temporada 2006

Mozarteum Brasileiro

- Maio, de 7 a 12 (em São Paulo, Rio de Janeiro e Blumenau)

WDR Sinfonie-Orchester Köln. Semyon Bychkov (regente) e Sayaka Shoji (violino).

- Junho, de 4 a 9 (em São Paulo, Rio de Janeiro e Santos)

Freiburger Kammerphilharmonie, Coro Giuseppe Verdi e Coro Barroco da Bahia. Andreas Winnen (regente).

- Junho, de 26 a 29 (em São Paulo, Ribeirão Preto e Santos)

Solistas de Trondheim. Per Tengstrand (piano) e Emilia Amper (harpa).

- Agosto, de 18 a 23 (em São Paulo, Rio de Janeiro e Blumenau)

Orquestra Sinfônica da Rádio de Frankfurt. Hugh Wolff (regente).

- Setembro, de 17 a 22 (em São Paulo, Rio de Janeiro e Santos)

Kremerata Báltica. Gidon Kremer (regente e violino solista).

Detalhes em: www.mozarteum.org.br

Orquestra Petrobrás Sinfônica (Rio de Janeiro)

- Abril, dia 22: obras de J. G. Ripper, P. I. Tchaykovsky e A. Dvorák. Isaac Karabtchevsky (regente).

- Maio, dia 20: obras de A. Nepomuceno, J. Brahms e A. Bruckner com Nathalie Sttutzmann (meio-soprano), Eiko Senda (soprano), Luciana Monteiro (contralto), Martin Mühle (tenor), Stephen Bronk (baixo) e Coro Sinfônico do Rio de Janeiro. Isaac Karabtchevsky (regente).

- Junho, dia 17: obras de W. Lutoslawski, D. Shostakovich e F. Chopin (“Concerto No. 2) com Alexandre Dossin (piano). Antony Wit (regente).

- Agosto, dia 19: “Sinfonia No. 8 ‘Sinfonia dos Mil’” de G. Mahler, OPS com a Orchestre Nationale de Pays de la Loire (França), corais e grande elenco lírico. Isaac Karabtchevsky (regente).

- Setembro, dia 14: Sinfonia coral “The Bells” e “Concerto para piano No. 3”, com Bruno Leonardo Gelber (piano). Isaac Karabtchevsky (regente).

Detalhes em: www.petrobrasinfonica.com.br

Sociedade de Cultura Artística (São Paulo)

- Março, dias 28 e 29: Orquestra da BBC da Escócia. Ilan Volkov (regente), Barbara Hannigam (soprano) e Michael Collins (clarineta).

­- Maio, dias 30 e 31: Orquestra Filarmônica Tcheca. Gerd Albrecht (regente) e Elisabeth Leonskaya (piano).

- Junho, dias 21 e 22: Quarteto de Cordas Alban Berg.

- Junho, dias 27 e 28: Academia de Música Antiga de Berlim. Yeree Suh (soprano), Midori Seiler (violino) e Christoph Huntgeburth (flauta).

- Agosto, dias 12 e 13: Orquestra da Ópera da Noruega. Olaf Henzold (regente).

- Setembro, dias 3 e 4: Orquestra Filarmônica Estatal da Renânia e Coro Bach de Mainz. Ralf Otto (regente).

- Outubro, dias 9 e 10: Orquestra Nacional de Espanha. Josep Pons (regente).

- Outubro, dias 24 e 25: Les Musiciens du Louvre. Marc Minkowski (regente).

Detalhes em: www.culturaartistica.com.br

Theatro Municipal de São Paulo

- Março, dias 18, 20, 22 e 24: “A Flauta Mágica”, de W. A. Mozart, com Fernando Portari (tenor), Rosana Lamosa (soprano), Lício Bruno (barítono), Lys Nardotto (soprano), Edna d’Oliveira (soprano), José Gallisa (baixo) e Orquestra Experimental de Repertório. Jamil Maluf (regente).

- Abril, dia 23: “Sinfonia de Câmara” de D. Shostakovich, “Suíte Pulcinela” de I. Stravinski e “Quatro Cantigas” de R. Coelho de Souza, com Mirna Rubin (soprano) e a Orquestra Sinfônica Municipal. Juliano Suzuki (regente).

- Maio, dia 7: obras de D. Milhaud, R. Strauss e “Aubade”, de F. Poulenc, com Maria José Carrasqueira (piano) e a Orquestra Sinfônica Municipal. Paulo Nogueira (regente).

- Junho, dia 4: “Hymnen”, de K. Stockhausen e “Pan”, de F. Menezes, com a Orquestra Sinfônica Municipal. Pedro Amaral (regente).

- Agosto, dias 19, 21, 23 e 25: “La Gioconda”, de A. Ponchielli, com Eliane Coelho (soprano), Kaludi Kaludov (tenor), Lício Bruno (barítono), Denise de Freitas (meio-soprano), Luis Ottavio Faria (baixo) e a Orquestra Sinfônica Municipal. José Maria Florêncio (regente).

- Agosto, dia 20: Duo Assad de violões e Orquestra Experimental de Repertório. Jamil Maluf (regente).

- Setembro, dia 15 e 17: Espetáculo “Cinema em Concerto” com a projeção do filme “O Encouraçado Potemkin” acompanhada pela Orquestra Experimental de Repertório. Jamil Maluf (regente).

- Outubro, dias 14, 16, 18 e 20: “Olga”, ópera de J. Antunes, elenco a definir.

Detalhes em: www.prefeitura.sp.gov.br/theatromunicipal

OSESP, destaques (São Paulo)

- Março, dias 8, 10 e 11: “Missa de Réquiem”, de G. Verdi, com Hasmik Papian (soprano), Mzia Nioradze (meio-soprano), Miroslav Dvorsky (tenor), Giacomo Prestia (baixo-barítono) e Coro da Fundação Príncipe de Astúrias. John Neschling (regente).

- Abril, dias 13, 15 e 17:Penthesilea” de H. Wolf e o 1º. Ato da ópera “A Valquíria” de R. Wagner, com Violeta Urmana (soprano), Stephen Gould (tenor) e Stephen Bronk (baixo). Ira Levin (regente).

- Maio, dias 18, 19 e 30: “Concerto para Violino” de I. Stravinsky e “Sinfonia No. 4” de G. Mahler, com Boris Brovtsyn (violino) e Lydia Teuscher (soprano). Roger Epple (regente).
- Junho, dias 29 e 30 e Julho, dia 1º.: “Salmo 23”, de Almeida Prado, e “Concerto No. 2”, de S. Prokofiev, com Rodrigo Esteves (barítono) e Nelson Freire (piano). John Neschling (regente).

- Agosto, dias 10, 11 e 12: “Sinfonia No. 4, ‘Italiana’” de F. Mendelssohn e “Sinfonia No. 14” de D. Shostakovich, com Tatiana Pavlovskaya (soprano) e Sergei Leiferkus (barítono). Yoram David (regente).

- Setembro, dias 21, 23 e 25: Óperas “Gianni Schicchi”e “Il Tabarro” de G. Puccini com grande elenco solista. John Neschling (regente).

- Outubro, dias 19, 20 e 21: “Concerto No. 2 para Violoncelo” de H. Villa-Lobos, com Antonio Meneses (violoncelo). John Neschling (regente).

- Novembro, dia 30 e Dezembro, dias 1 e 2: Concertos para um e dois pianos de W.A. Mozart, com Maria João Pires e Ricardo Castro (pianos). John Neschling (regente).
- Dezembro, dias 14, 15 e 16:
a orquestra recebe a cantora popular Mônica Salmaso e a Banda Mantiqueira. John Neschling (regente).

Detalhes em: www.osesp.art.br

10º. Festival Amazonas de Ópera (Manaus)

- Abril, dias 23, 26 e 30: “Otello”, de G. Verdi, com Dennis O’Neill (Otello), Eiko Senda (Desdemona), Genaro Sulvaran (Iago) e Denise de Freitas (Emilia). Luiz Fernando Malheiro (regente).

- Abril, dias 25 e 28 e Maio, dia 1º.: “Otello”, de G. Rossini, com Paulo Mandarino (Otello) Gabriella Pace (Desdemona), Carlos Ullan (Roderigo), Sérgio Weintraub (Iago), Luciana Bueno(Emilia) e Pepes do Valle (Elmiro). Marcelo de Jesus (regente).

- Maio, dias 23, 26 e 28: “Fosca”, de Carlos Gomes, com Celine Imbert (Fosca), Luciana Tavares (Delia), Juremir Vieira (Paolo) e José Antônio Soares (Cambro). Kemal Khan (regente).

- Maio, dias 25, 27 e 30: “La Gioconda”, de A. Ponchielli, com Eliane Coelho (La Gioconda), Francisco Casanova (Enzo), Denise de Freitas (Laura) e Genaro Sulvaran (Barnaba). Luiz Fernando Malheiro (regente).


[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

17 fevereiro 2006

Pocket-Mozart

As Bodas de Fígaro estréia no Theatro Municipal de São Paulo

Uma mulher arrastava-se pelo chão, acompanhada apenas pela cadência de um metrônomo mecânico. Uma bailarina fazia seus movimentos numa câmara à parte. Pelas escadarias e ante-salas, violinistas tocavam de forma rapsódica melodias famosas. Dentro da câmara ardente – isto é, a platéia – quem entrava se deparava com o palco em sua forma crua, sem cenários, com suas entranhas de cabos e tijolos à mostra, ao som cerimonioso do órgão tubo que ecoava a acordes escritos pelo salzburguense mais famoso do mundo.

Foi este ambiente de happening – diga-se de passagem, bastante “retrô” e comportado – que, no sábado passado, preludiou a estréia da montagem paulistana da ópera “As Bodas de Fígaro”, iniciando oficialmente a temporada 2006 do Theatro Municipal de São Paulo. Num ano marcado por efemérides de importantes compositores clássicos – Radamés Gnatalli, Dmitri Shostakovich e Robert Schumann – o Municipal aposta suas fichas no festival “Mozarteando”, que prevê ainda para este ano mais uma ópera (“A Flauta Mágica”) e diversos espetáculos sinfônicos, camerísticos e de bailado dedicados aos 250 anos de nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart.

Com a Orquestra Sinfônica Municipal (OSM) sob a regência de José Maria Florêncio e a direção de cênica e de arte de José Possi Neto, as “Bodas” paulistana foi, em sua maior parte, uma montagem alegre e cativante, características estas asseguradas sobretudo pela partitura de Mozart e pelo libreto de Lorenzo da Ponte, que narra uma verdadeira “comédia dos erros” em torno do casamento de Fígaro e Susanna, que devem se esquivar dos desejos, por assim dizer, pouco ortodoxos que o Conde de Almaviva tem para com a noiva do protagonista da história.

O barítono Paulo Szot desempenhou um Fígaro musicalmente seguro, levando a cabo a astúcia inerente ao personagem, explorando as blagues que aqui e acolá surgem no libreto, seja nos recitativos secos, seja nas árias, tal como em “Se vuol ballare, signor Contino” e na famosa “Non più andrai, farfallone amoroso”. Susanna (a soprano Rosana Lamosa) esteve à altura da astúcia cênica e musical de seu par cênico, tal como no hilário dueto “Via, resti servita” em conjunto com Marcellina (a soprano Elizabeth Gomes).


No papel de Conde o barítono Stephen Bronk imprimiu com seu talento musical e cênico às diversas facetas sentimentais deste personagem, ora libidinoso, ora perverso, ora confuso com os estranhos acontecimentos que rodeiam a si e sua esposa Rosina (a soprano Claudia Riccitelli).

Apesar de no contexto da trama desenvolver um papel co-adjuvante, a meio-soprano Denise de Freitas explorou belamente as duas pequenas árias “Non so più cosa son, cosa faccio” e “Voi che sapete che cosa è amor” que Mozart reservou ao pajem adolescente Cherubino. Apesar dos bons desempenhos individuais, nos diversos trechos em conjunto ficou a impressão de que poderia haver maior dinamismo cênico.

Mesmo a ambientação da história não prever um lugar necessariamente suntuoso, causa estranheza a cenografia simplória da montagem (em especial, nos três primeiros atos) imprimindo um aspecto de “pocket ópera” um tanto deslocado para um palco com as dimensões do Municipal. A opção de reduzir o colorido de todos os figurinos (bem como o cenário) a matizes de bege também não ajudou a salvar a simplicidade visual da montagem, o que contrastou com a excelência do elenco vocal e da boa interpretação da OSM. Mais uma vez, as aparições do corpo de bailado são tão dispensáveis que eles sequer aparecem na parte principal do programa.

Apesar do desnível entre a parte musical e a cênica, as “Bodas” paulistana é uma forma alegre de iniciar este ano que promete muitas homenagens a Mozart, mas que ainda está por provar o que poderá cumprir.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]