25 junho 2006

Ecos de uma música interrompida

Romance de Andrei Makine narra o terror na vida de um pianista que sobrevive à perseguição de Stálin.

São apenas algumas dezenas de páginas, mas a suposta concisão que isto possa indicar não é a característica mais marcante do romance “A música de uma vida”, de Andrei Makine (Cia das Letras, 90 págs., R$ 28), recentemente lançado no Brasil. Originalmente publicado em 2001, o livro narra as desventuras de Aleksei Berg, personagem que na adolescência, às vésperas de seu début como pianista, vê sua trajetória de vida interrompida pela perseguição que a ditadura de Stálin então impôs aos inimigos do Estado.

Numa época em que a desconfiança e a paranóia reinavam absolutas na nação soviética qualquer coisa poderia ser motivo para uma perseguição, e com tênue ironia o autor faz com que justamente a música, mais precisamente a presença um violino, seja o elemento que decidirá a malfada sorte do casal Berg e de seu filho Aleksei, que foge da capital Moscou em busca do abrigo nos confins da Ucrânia, às vésperas da ofensiva nazista. A angústia da repressão, da fuga e do exílio é algo que Andrei Makine é experimentado: russo de nascimento, em 1987 ele pede asilo político na França, onde desde então vive e escreve na língua local.

Vocação musical, guerra e perseguição. O enredo em si há muito de comum as memórias de Wladislaw Szpilman, rearranjadas no romance “O Pianista” (que em 2002 inspirou o filme de Roman Polanski). Entretanto, a personagem de Makine não é um herói trágico no sentido clássico, aquele que luta pela sobrevivência para, um dia, voltar a trilhar o caminho perdido.

Pelo contrário, o protagonista Aleksei vê-se obrigado a adotar a identidade de um soldado – verdadeiro antípoda do artista – e seu passado musical se esvai a ponto de se transformar numa memória alheia. Mesmo quando há oportunidades de reviver a música de sua vida, Aleksei nada faz. Não por prudência, mas sim porque a música faz parte da vida de uma outra pessoa, da qual apenas alguns ecos ainda ressoam em seu interior.

A antiga vocação volta à tona apenas em um ápice de angústia e humilhação. Porém, isto não significa o resgate de uma existência não vivida, pois a mensagem do livro é clara: em meio ao horror, não há como trilhar os caminhos perdidos. Resta apenas percorrer os caminhos possíveis.

24 junho 2006

A prosa sob o sol úmido

Contos completos de Tennessee Williams revelam a origem da força de sua dramaturgia.

Popular em seu país natal pelas dezenas de peças de teatro e roteiros de cinema que escreveu ao longo de sua carreira, no Brasil o dramaturgo norte-americano Tennessee Williams é mais conhecido pelo roteiro do filme “Um bonde chamado desejo”, que em 1951 imortalizou o jovem Marlon Brando ao gritar desesperadamente por Stella em frente a uma casa miserável. Adaptado de sua própria peça de teatro, o enredo é povoado por figuras excluídas do sonho americano, ou como eles mesmo gostam de se referir, loosers (perdedores) que sem dinheiro, emprego respeitável e perspectiva de vida nada mais lhes restam senão um cotidiano ordinário, regado a entretenimentos baratos, álcool, brigas e relações sexuais brutais.

Párias da sociedade são também comuns em outras peças suas, entre as quais, o sucesso “Gata em teto de zinco quente”. E é este mesmo tipo de gente que habita a maioria de seus contos, que este ano têm sua edição completa no livro “49 contos de Tennessee Williams” (Cia. das Letras, 691 págs., R$ 46).

Nascido em 1911 como Thomas Lanier Williams, ganhou o nome artístico de Tennessee (apesar de ter nascido no Mississippi) devido ao seu acentuado sotaque sulista. Aliás, os vilarejos e cidades desta região dos EUA, e em especial o Quarteirão Francês de Nova Orleans (antes dele ser transformado na Disneylândia do jazz e de sua destruição pelo furacão Katrina), constituem o cenário mais corriqueiro de seus contos, escritos ao longo de cinqüenta e dois anos, tendo Williams publicado seu primeiro texto quando contava com apenas 17 anos.

Tamanho espaço de tempo faz destes contos não apenas o documento do amadurecimento artístico e biográfico do autor, mas constituem também um caleidoscópio de personas e temáticas que irão povoar suas peças e filmes, muitos deles preconizados em seus nestes contos, tal como a peça “À margem da vida”, baseada no conto “Retrato de uma moça em vidro”, e “A Noite do Iguana”, baseado no conto homônimo.

Porém, mais do que meros laboratórios para projetos dramatúrgicos, seus contos propiciam ao leitor o contato direto – por vezes chocante – com histórias e situações nem sempre funcionais para o palco ou para a tela, seja pelas limitações do próprio meio diante de tamanha complexidade psicológica, seja pelo pudor de materializar situações ou personagens tabus. Pessoas como artistas decadentes, prostitutas, michês, negros semi-escravizados, tuberculosos “cuspidores de sangue”, velhacas ricas ávidas por sugar o sangue da juventude alheia e jovens solteironas sedentas de um calor masculino que lhes é proibido são figuras freqüentes em seus contos e constituem parte substancial dos personagens arquetípicos do universo de Williams.

Além da notoriedade alcançada por seu sucesso artístico, em vida Williams foi também muito conhecido pela virulência com que a imprensa sensacionalista abordava sua homossexualidade (e pelos inevitáveis escândalos que esta opção acarretava na época). Em seus contos o autor trata a questão de maneira franca e explícita. Os anseios mais íntimos de um enrustido (outra figura freqüente nos contos) são jogados pra fora do armário, e o desejo homo-erótico é tratado sem meias palavras, e se este pende entre a vulgaridade e o amor é apenas pelo fato disto ser uma coisa que ocorre com qualquer ser humano.

Apesar de freqüentemente se debruçar sob a temática homossexual (inclusa aí também a feminina), é injusto rotular Williams como um gay writer, tal como infelizmente muito de seus compatriotas fazem, imagem esta que o prefácio do escritor e amigo Gore Vidal procurar derrubar, tendo em vista que o escopo de emoções e situações trabalhadas é amplo demais para uma interpretação tão simplista.

Se por um lado, não só a homossexualidade, mas toda e qualquer situação ou desejo sexualmente imoral para época é uma constante em seu texto, pelo outro sua prosa é pontuada situações embebidas de memórias familiares, de forte apelo sentimental: o menino que testemunha silenciosamente o desabrochar da feminilidade da irmã com quem, então, nunca mais irá brincar, a perseverança de viver da avó moribunda e a enigmática, mas ao mesmo tempo tenra imagem do pai, cuja importância no imaginário de Williams fica registrada no elegíaco “O homem da poltrona estofada”.

Apesar do esforço que a leitura de quase sete centenas páginas exige, tal incursão pelos contos de Williams justifica-se pela fluidez de sua prosa e pelo prazer da recorrência de temas e personagens ao longo de seu itinerário artístico (que se fundo ao biográfico), transcorrido sob o calor úmido das paragens sulistas e seu singular modo de encarar a vida.

09 junho 2006

A música como texturas e cores

CDs trazem a beleza da música contemporânea brasileira

Desde meados da década de 1950, ocasião em que a eclosão dos movimentos vanguardistas da música européia confirmou o fim do tradicional sistema tonal como a linguagem musical para a confecção de uma música “nova”, o ofício do compositor tornou-se uma atividade extremamente íntima e individual. Em contrapartida, observou-se a tendência do público preterir a música de seu tempo em favor de estéticas datadas de ao menos um século atrás.

Passado tanto tempo, a moderna música clássica ainda é exceção nas salas de concertos ao redor do mundo: independentemente de proposta musical, a esta audiência mostra por vezes verdadeira aversão a qualquer compositor que esteja vivo.

À parte deste ambiente freqüentemente hostil, a busca por novos caminhos continuou, arrebanhando um público próprio e fiel. No atual cenário nunca a música brasileira esteve tão a par – ou mesmo na dianteira – do que se faz de mais moderno em termos de música. Parte desta “nova Música Nova” brasileira pode conferida nos álbuns “Música Contemporânea Brasileira para Clarinetes e Percussão” e “Materiales” (R$ 20 cada) idealizados, produzidos e interpretados pelo percussionista Joaquim Zito Abreu, com o patrocínio do programa Petrobrás Cultural.

Trata-se de dois CDs nos quais a rica sonoridade dos instrumentos de percussão mostra-se como um cantochão que unifica diferentes poéticas musicais de expressivos compositores brasileiros.

No álbum dedicado às obras de percussão e clarinete (a cargo do excelente Paulo Passos), é marcante o trabalho sobre a sutileza do colorido tímbrico, em especial nas obras de Luiz Carlos Csekö, Roberto Victorio e Paulo Chagas. Numa linguagem mais descontraída, com a obra “Imagens” Ronaldo Miranda garante a quebra de uma certa homogeneidade estilística que quase dominou o álbum, que encerra de forma suntuosa com a obra “Colores (Phila: In Prasentia)”, de Flo Menezes, na qual à música instrumental é adicionada uma parte eletroacústica que justifica sua escuta em fone de ouvido para uma melhor apreensão dos sons que literalmente circulam o ouvinte.

Aliás, suntuosidade tímbrica é também o forte da peça “Materiales”, de Willy Corrêa de Oliveira, e que dá o nome ao CD de percussão e voz, a cargo da soprano Andrea Kaiser. Sob a regência de Abel Rocha, esta é uma típica obra onde uma gravação competente (tal como a realizada) faz toda diferença para a verdadeira degustação auditiva que a partitura proporciona.

Na contramão da pluralidade sonora empregada à percussão, a obra “Carta de Jesuralém”, de Almeida Prado, por sua vez lança mão de uma escritura simples para a realização deste quase teatro musical sobre a paixão de Cristo, contrastando com consigo mesmo em “Cartas Celestes XI”, única obra sem canto do referido álbum que se completa com obras de Jaceguay Lins e Ernst Widmer.

Apesar das limitações inerentes à proposta, este projeto é uma ótima oportunidade não apenas para conhecer um pouco mais de nossa música atual, mas acima de tudo para desfrutar as texturas e as cores de uma música que tem muito a dizer aos nossos ouvidos.

O mês da música moderna

Em contraste com o ostracismo pelo qual a música contemporânea em geral passa ao longo do ano, este mês de junho mostra-se especialmente interessante para aqueles que gostam de se enveredar pelo admirável mundo novo da música.

No decorrer desta semana São Paulo abrigou importantes eventos na área, e que se estenderão ao longo do mês. Domingo passado o público paulistano teve a oportunidade de conferir três estréias de obras sinfônicas modernas, algo infelizmente muito raro nas atuais conjecturas. Sob a regência do maestro português Pedro Amaral a Orquestra Sinfônica Municipal estreou mundialmente a obra “Pan” do compositor paulistano Flo Menezes e realizou as estréias brasileiras de “Fünf Sternzeichen” do alemão Karlheinz Stockhausen e de “zeroPoints” do húngaro Peter Eötvös.

Paralelamente, o Centro Cultural São Paulo lança na Galeria Olido os CDs do projeto “Música Contemporânea Brasileira”, que incluem um extenso catálogo de obras de compositores brasileiros e a publicação em suporte digital de cinqüenta partituras. Para o lançamento a instituição programou para esta semana uma série de eventos que continuam hoje com o concerto com obras de Almeida Prado (às 21h) e adentram o fim-de-semana com Rodolfo Coelho de Souza (sábado, às 21h) e com a projeção do filme “A Odisséia Musical” sobra a vida e a obra de Gilberto Mendes, considerado o “patriarca” da música moderna brasileira (domingo, às 20h).

Ainda neste domingo, dia 11, a série de câmara da Osesp fará um concerto dedicado à música do século XX que inclui a magistral “Persephassa” de Iannis Xenakis. Neste mesmo dia dá se início à maratona de concertos da VI Bienal Internacional de Música Eletroacústica de São Paulo (BIMESP), evento singular na América Latina e que se estenderá ao longo da semana nos teatros dos Sescs Ipiranga e Vila Mariana.

Para os mais dispostos, vale a pena encarar uma estrada e conferir o panorama que o Espaço Cultural CPFL, em Campinas, fará todos os sábados de junho (sempre às 21h), sobre a obra do compositor amazonense Claudio Santoro.

No Rio, além do concerto de lançamento dos CDs de Joaquim Zito Abreu (ver serviço acima), merece destaque as atividades que o grupo Prelúdio 21 realizou ao longo desta semana no Centro Cultural Telemar. Integrado por jovens compositores, há diversos anos o grupo propicia com regularidade ao público carioca concertos com o que há de mais recente em termos de música clássica. Trata-se de uma iniciativa ímpar que deveria ser tomada como exemplo em todo o país.