23 fevereiro 2007

Quatro séculos de ópera

A importância de L’Orfeo, de Monteverdi

Um dos maiores espetáculos da terra está completando quatrocentos anos de existência. Foi presumivelmente no dia 24 de fevereiro de 1607, nos salões da Accademia degli Invaghiti, na cidade Mântua (região da Lombardia, Itália), que ocorreu a primeira representação de L’Orfeo, favola in musica, então um curioso espetáculo que unia de forma muito especial música, canto e representação em uma mesma performance. As testemunhas oculares (ou melhor, auriculares) presenciaram uma combinação até então praticamente inédita entre diferentes números musicais, unidos para contar a clássica história do mito grego do semideus Orfeu e seu trágico amor pela ninfa Eurídice. Dois anos depois viria ao mundo em forma de partitura o registro do que se passara naquele dia inverno: era a certidão de nascimento da Ópera, e pela paternidade respondia um célebre compositor, violinista e cantor cremonense chamado Claudio Monteverdi.

Como é comum na história da arte como um todo, os marcos históricos não são fixados pela tradição artística e pela historiografia unicamente por critérios cronológicos: tão importante quanto o pioneirismo, é o valor estético e a influência que esta obra virá exercer no futuro. É por meio desta perspectiva que L’Orfeo de Monteverdi pode ser entendido como a “primeira” ópera composta.

Anteriormente a esta obra-prima já se registrava na história da música o surgimento de um espetáculo musical que em muito se aproximava da noção de ópera que Monteverdi viria iniciar. Em finais do século XVI (período que na história da música corresponde ao final do Renascimento) Giovanni de Bardi, rico e instruído Conde de Vernio, recebia em seu palácio na cidade Florença a intelectualidade local para reuniões nas quais se discutia e se fazia música e poesia. Este círculo passou a ser conhecido como a Camerata Florentina.

Dentre os participantes da camerata constavam figuras como Vicenzo Galilei (pai do astrônomo Galileu), Giulio Caccini, Jacopo Corsi, Ottavio Rinuccini e Jacopo Peri que juntos conjecturavam sobre a real expressão poética da poesia grega clássica, que tradicionalmente era ligada ao canto. Foi com na tentativa de “recriar” a essência da poesia e do teatro grego que os membros da camerata acabaram dando o ponta-pé inicial da idéia ópera, por meio da composição de um discurso narrativo-musical no qual enfatizava-se o valor e a compreensão do texto, que por isso passaria então a ser recitado, e não cantando mais “cantado” de forma tradicional.

É deste contexto que surgem o que podemos considerar as primeiras experimentações operísticas, como Dafne, composta em 1598 com texto Rinuccini e música de Peri e Corsi, e Euridice, de 1600 também com texto de Rinuccini e música de Peri e Caccini.
Apesar das semelhanças que as partituras florentinas têm com a famosa obra de Monteverdi – tais como o uso do recitativo e o próprio enredo, baseado em mitos gregos – L’Orfeo destaca-se de seus similares contemporâneos. Isto se deve principalmente pela forma como o compositor imprime ao discurso dramático um universo musical extremamente rico e cativante, ao aliar às modernas técnicas a graça dos madrigais representativos e a sonoridade marcante dos ritornelli instrumentais. A música que Monteverdi cria para acompanhar a tragédia de Orfeu é constituída por diversos gêneros musicais em seu interior, fato que garante fluidez à sua apreciação e que será tomada como referência por toda uma tradição operística que se consolidaria no Barroco, ao longo do século XVII.

A importância de L’Orfeo para a história da ópera é tão fundamental que a partir de sua redescoberta (em finais do século XIX) esta obra de Monteverdi passou a constar no repertório básico de diversas companhias e casas de ópera mundo afora, mesmo ela pertencendo a um estilo musical que muitas vezes orquestras e cantores nem sempre se sentem muito confortáveis. Isto se deve às inúmeras peculiaridades envolvidas em cada montagem diferente desta obra, tais como a própria técnica de emissão vocal do cantor e todo um complexo trabalho de orquestração da partitura. Tudo isto faz com que cada nova apresentação de L’Orfeo seja um espetáculo totalmente novo, vivo, que sempre vale a pena ser celebrado.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]

17 fevereiro 2007

Um nonagenário chamado samba

Gravação histórica de "Pelo Telephone" resiste ao tempo e completa 90 anos.

“Pelo Telephone! Samba carnavalesco gravado pelo Bahiano e corpo de Coro, para Casa Edison, Rio de Janeiro”, diz quase aos berros uma voz masculina aguda, pouco antes de um violão, um cavaquinho e um clarinete atacarem de forma um tanto claudicante os primeiros acordes de uma execução que iria entrar para a história da música brasileira. É assim, entre chiados típicos de discos antigos e seu timbre distorcido de vozes e instrumentos musicais que surgiu o documento histórico que é considerado a certidão de nascimento do samba. É no princípio do ano de 1917 que surge no incipiente, porém rico mercado fonográfico brasileiro, os primeiros discos com a palavra “samba” em seus rótulos.

Neste início de 2007 esta gravação do samba carnavalesco Pelo Telephone completa noventa anos de idade, e permanece forma muito viva, seja pela remasterização do fonograma original ou por meio de novas versões de músicos modernos. Entretanto, ainda muito viva são as controvérsias que cercam esta canção, entre as quais, a sua autoria.

Com música de Ernesto Joaquim Maria dos Santos (popularmente conhecido como Donga) e texto de João Mauro de Almeida, Pelo Telephone foi um grande sucesso no carnaval carioca de 1917. Porém, pesquisadores e especialistas têm argumentado que parte deste sucesso deveu-se, talvez, pelo fato da canção já ser conhecida anteriormente em meio a algumas comunidades populares do Rio de Janeiro. Entre tantos detalhes e fatos esquecidos ou propositalmente colocados de lado, apenas um mergulho histórico pode nos ajudar a entender melhor a magia e os mistérios que circundam o surgimento deste gênero musical que é considerado por muitos a própria essência da cultura popular brasileira.

Precaução ou malandragem?

Apesar do senso-comum que diz que a gravação de Bahiano de Pelo Telephone deva ser considerada a certidão nascimento do samba, é bom esclarecer que se trata uma atribuição de cunho mais simbólico do que necessariamente histórico. Mesmo antes de a música ganhar as residências brasileiras pela voz de Bahiano, ela já havia sido gravada em versão instrumental pela Banda Odeon, possivelmente pouco tempo antes de sua interpretação (o disco de Bahiano está registrado sob a numeração 121.322A, e a da Banda Odeon 121.313B). É da mesma época uma terceira versão da música, gravada pela Banda do 1º. Batalhão de Polícia da Bahia.

Entretanto, antes mesmo da música ganhar seus primeiros registros fonográficos, está registrado que em 6 de novembro de 1916 Donga entra com uma petição no Departamento de Direitos Autorais, repartição da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Mais especificamente, a petição trata-se de uma pedido de registro de uma partitura de samba com o título de Roceiro. Dez dias depois, Donga anexa ao processo uma declaração na qual diz que a música havia sido estreado em 25 de outubro daquele mesmo ano, ocorrida no Cine-Theatro Velho.

Estudos indicam que as notas musicais utilizadas para o registro da partitura para piano foram manuscritas por Pixinguinha, músico com quem Donga iria integrar o lendário grupo “Os Oito Batutas”. Consta ainda que na nesta partitura esteja indicada uma dedicatória a “Morcego” (apelido de Norberto Amaral) e a “Peru” (Mauro de Almeida, o letrista da música). Foi possivelmente no hiato entre o registro e a primeira gravação que a canção ganhou o nome de “Pelo Telephone”, ao mesmo tempo em que ganhou a letra que seria cantada por Bahiano (somente nesta gravação é que o nome de Mauro de Almeida surge associado autoria da canção).

Documentalmente, não há como refutar a primazia autoral de Donga sobre a parte musical de Pelo Telephone. Entretanto, pesquisas históricas realizadas no âmbito da cultura popular carioca indicam que mais do que uma obra de um único criador, Pelo Telephone fazia parte de uma cultura musical coletiva.

É o que conclui o historiador José Ramos Tinhorão, em seu livro História Social da Música Popular Brasileira. Ao tratar das festas populares realizadas nas chamadas “casas de baianas” nos subúrbios cariocas, Tinhorão defende que “em fins de 1916 um desses participantes resolveu aproveitar algumas estrofes com certeza ali muitas vezes repetidas, para um arranjo ampliado com novos versos”. Em meio ao estereótipo de aproveitador que o sambista já então detinha, não fica difícil concluirmos que o registro autoral de Pelo Telephone tenha sido um ato de malandragem. Porém, o historiador vê o fato sob uma outra perspectiva, como algo que “vinha a revelar o início do processo de profissionalização dos músicos com talento criador saídos das camadas populares”.

A questão dos direitos autorais na cultura popular foi e é um problema muito difícil de ser resolvido. Entretanto, à época da “criação” de Pelo Telephone, os debates em torno da questão estavam longe de terem as gigantescas proporções que este assunto tem nos dias atuais, em parte por responderem a uma parcela do contexto econômico muito menor que nos dias de hoje. Em depoimento gravado pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Donga dá a entender que queria apenas profissionalizar algo que só se fazia informalmente.

“Bem, o negócio sempre foi de improviso. Nós tínhamos nos tornado simpáticos, tocando de graça. Cansei de tocar de graça em todos os salões. [...] Eu sempre fui o orientador da turma. Não sei por que, eu é que resolvia a parte comercial, os serviços”, diz Donga poucos anos antes de morrer, em 1974, já aposentado como oficial de justiça.

De fato, se por um lado o surgimento de Pelo Telephone desempenha papel fundamental no entendimento artístico da música popular brasileiro, pelo outro ele não deixa de ser um símbolo da profissionalização de toda uma categoria profissional. Trata-se de algo de relevância, tendo em vista a histórica relação entre os músicos populares e a informalidade profissional e educacional (de certa forma, presente inclusive nos dias de hoje).

Se ainda atualmente a contestação da autoria individual de Donga sob Pelo Telephone permanece, é tempo de entendê-lo como o portador de uma tradição cultural na qual ele nasceu e vivenciou, sendo ele uma figura determinante em sua codificação, fato que possibilitou que toda uma prática musical se mantivesse relativamente acessível nos dias de hoje.

O menino da casa de Tia Amélia

Como era muito comum com os músicos de sua época, Donga vinha de uma família simples do Rio de Janeiro. Era filho do pedreiro Pedro Joaquim Maria, que nas horas vagas tocava bombardino, instrumento aparentado com a tuba muito utilizado nas bandas marciais e de coretos da época. Porém, apesar da ascendência musical por parte de pai, é sua mãe, Amélia Silvana de Araújo (popularmente conhecida como Tia Amélia) que se mostrará como uma influência decisiva em sua vida. A exemplo do que ocorria em diversos bairros da periferia carioca, era em torno das “casas de baianas” que a cultura negra podia ser praticada resguardada das repressões policiais. Tia Amélia era a matriarca da principal casa de baianas da Cidade Nova, modelo este que ocorria em diversos lugares da então capital federal, tais como Tia Dadá, na Pedra do Sal, e Tia Ciata, na Rua Visconde de Itaúna.

Eram nessas casas que gêneros musicais ligados à cultura negra – tais como o maxixe, o lundu e a modinha – eram livremente praticados, seja em grandes festas ou em pequenas reuniões. É neste contexto que o próprio samba surge, tal como relatado por diversas fontes históricas.

Porém, apesar de gozarem de ampla aceitação nas chamadas camadas populares cariocas, foi apenas com o crescimento da indústria fonográfica brasileira – alavancada pelo pioneirismo de Frederico Figner e sua Casa Edison – que este gênero de música popular urbana passou a entrar nos lares das elites econômicas de então, rivalizando com gravações de Tangos, Schottisch e de música clássica.

Em pouco tempo, o samba, bem como outras as práticas musicais exercidas por negros, impuseram-se como elemento principal de nossa identidade musical, ao ponto do próprio Donga, junto com Pixinguinha e os Oito Batutas, terem excurcionados pela Europa e participado de gravações internacionais enquanto representantes de nossa cultura musical.

Hoje em dia o samba é um fenômeno rico, multi-facetado em diversos segmentos como samba enredo, samba de breque, samba-canção, etc. Talvez os ouvidos modernos tenham dificuldade de reconhecer em Pelo Telephone o gérmen inicial do samba, que a despeito de qualquer predileção ideológica ou estética, constitui-se ainda símbolo fundamental da identidade musical brasileira.

Serviço:
Várias versões históricas de Pelo Telephone podem ser ouvidas gratuitamente no site do Instituo Moreira Salles (www.ims.com.br). A remasterização em CD de Pelo Telephone pode ser encontrada no livro “A Casa Edison e seu tempo”, de Humberto M. Franceschi (Sarapui/Biscoito Fino, R$ 200).

Fotos: 1) Interior da Casa Edison, na Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, início do século XX; 2) Dona (esq.) sendo apresentado por Villa-Lobos (dir.) ao maestro Lepold Stokowski (centro).

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]

Pelo Telephone

Música de Donga, com texto de Mauro de Almeida.

O chefe da folia pelo telephone manda lhe avisar
Que com alegria não se questione para se brincar
Ai, ai, ai. Deixa as mágoas para trás ó rapaz.
Ai, ai, ai. Fica triste se é capaz, e verás.

Tomare que tu apanhes
Para não tornar a fazer isto
Tirar amores dos outros
E depois fazer seu feitiço

Ai, se a rolinha (Sinhô, sinhô)
Se embaraçou (Sinhô, sinhô)
É que a avezinha (Sinhô, sinhô)
Nunca sambou (Sinhô, sinhô)
Porque este samba (Sinhô, sinhô)
De arrepiar (Sinhô, sinhô)
Põe perna bamba (Sinhô, sinhô)
Mas faz chorar (Sinhô, sinhô)

O "Peru" me disse se o "Morcego" visse eu fazer tolice
Que eu então saísse dessa esquisitice de disse-não-disse.
Ai, ai, ai. Aí está o canto ideal, Triunfal
Ai, ai, ai. Viva o nosso carnaval sem rival.

Se quem tira o amor dos outros por Deus fosse castigado
O mundo estava vazio e o inferno habitado.

Queres ou não (Sinhô, sinhô)
Vir pro cordão (Sinhô, sinhô)
É ser folião (Sinhô, sinhô)
Do coração (Sinhô, sinhô)
Porque este samba (Sinhô, sinhô)
De arrepiar (Sinhô, sinhô)
Põe perna bamba (Sinhô, sinhô)
Mas faz chorar (Sinhô, sinhô)

08 fevereiro 2007

A música de nosso "Brazil"

Pesquisador lança o olhar estrangeiro sobre a música brasileira.

Falar da música brasileira é uma tarefa espinhosa: nossa cultural musical é ampla, compreende uma grande extensão geográfica e suas raízes históricas, apesar de detectáveis, ainda carecem de estudos mais aprofundados (além da difusão daqueles já existentes). Muitos brasileiros já se aventuraram por estas sendas tão densas e perigosas, pesquisando nichos específicos de nossa cultura musical. No entanto, mais perigoso ainda é realizar uma impressão generalista sobre esta cultura musical tão plural, e a tarefa torna-se de maior risco quando se tem como objetivo explicar a música no Brasil para uma audiência que, possivelmente, pouco conhece além dos estereótipos difundidos mundo afora, isto é, a trívia “samba, carnaval e bossa-nova”.

É justamente este o propósito do livro “Music in Brazil”, escrito pelo músico e pesquisador norte-americano John P. Murphy (leia entrevista abaixo), e que apenas recentemente está mais acessível nas livrarias brasileiras. Integrante da série de livros didáticos Global Music Series, publicados pela editora da universidade de Oxford, a série abrange diversos culturas musicais mundo afora, um segmento que se convenciou chamar de world music, e inclui títulos sobre a música em Bali, Egito, Java Central, EUA, entre muitos outros. Além dos volumes geograficamente temáticos, a coleção edita também outros dois voltados para a conceitualização teórica do assunto: “Teaching Music Globally”, de Patricia S. Campbell, e “Thinking Musically”, de Bonnie C. Wade, ambas coordenadoras da série.

É sob a perspectiva de uma obra didática que o livro de Murphy deve ser entendido. Deve-se, então, levar em conta tanto seus propósitos e público como sua diminuta dimensão (menos de duzentas páginas). Entretanto, nada disto diminui o mérito da obra, que se mantém interessante inclusive para nós, brasileiros.

Para dar conta da tarefa, Murphy – que morou no Brasil e se comunica em português com fluência – propõe três visões sobre a nossa música: 1) “Música e identidade nacional”; 2) “Música e identidade regional” e 3) “Cosmopolitismo musical”.

Na primeira parte do livro o autor detém-se sobre a questão do samba enquanto nossa “música nacional”, partindo de seus primórdios históricos e chegando até um pequeno panorama atual e multifacetado deste gênero. É ainda nesta parte do livro que explica outros gêneros ligados à identidade geral da cultura musical brasileira, tais como o chôro e a bossa-nova. Na segunda parte, Murphy se detém sobre gêneros regionais que, apesar da suposta limitação geográfica, são de suma importância no caldeirão musical brasileiro, tais como o forró, a capoeira e a música das festas religiosas nordestinas (maracatu, bumba-meu-boi, etc.). Na última parte, o autor debruça-se sobre a complicadíssima tarefa de realizar um panorama da atualidade musical brasileira e alguns de seus gêneros. Aqui o autor dá ênfase gêneros da cena musical do Recife (notadamente Mangue Beat, de Chico Science e Nação Zumbi), cidade onde o autor morou por vários anos.

Apesar da necessidade pragmática de definições claras e diretas, Murphy não conduz o leitor a uma visão unívoca dos temas que aborda, algo muita importância quando se têm em mente que o público-alvo é justamente os estrangeiros. Um ponto de relevância na obra é a boa quantidade de exemplos em forma de partitura e de análises musicais, além das amostras em audio presentes no CD que acompanha o livro. O website do autor completa a suíte de material didático. É notável o esforço do autor em explicar ao público certas minúcias de nossa cultura (como, por exemplo, quando alerta o leitor da carga de preconceito que existente no Sul e Sudeste sobre o sotaque dos nordestinos).

Mesmo tendo em conta os propósitos da obra, seu calcanhar de Aquiles é a virtual ausência de referência às atividades musicais de caráter mais “internacional” em solo brasileiro, tais como as diversas correntes do rock-pop não miscegenados, bem como do jazz e da música clássica. O caráter didático da obra torna urgente a correção do mapa do Brasil (afinal, nosso litoral não é banhado pelo Golfo do México e a capital do Acre não é “Rio Braneo”).

O livro, evidentemente, não esgota o assunto (e nem é este seu propósito), mas pode ser uma boa introdução ao universo musical brasileiro. Inclusive para os próprios brasileiros.

Serviço:
“Music in Brazil” de John P. Murphy, 173 págs. (acompanha CD).
Oxford University Press, R$ 45
Site do autor: http://web3.unt.edu/murphy/brazil/
Clique e compre! (acredite, não estou ganhando nada com isto...)

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]

Entrevista com John P. Murphy

Professor de história do jazz na University of North Texas, John P. Murphy (na foto, à esquerda, com Arlindo dos Oito Baixos) realizou seu PhD. (equivalente ao nosso doutorado) sobre a festa pernambucana do cavalo-marinho, residindo por anos no nordeste brasileiro. Acadêmico, porém com intensa atividade musical, Murphy concedeu a seguinte entrevista ao Fim-de-semana (caderno da Gazeta Mercantil).

por Leonardo Martinelli

Como iniciou seu interesse pela música brasileira?

Nos anos 80, enquanto eu estava cursando etnomusicologia na Columbia University, em Nova Iorque, comecei a ouvir música brasileira, principalmente MPB e música folclórica. Fiz aulas de português e conheci dois alunos de pós-graduação brasileiros. Um deles me convidou para passar algumas semanas na casa dos pais, no Rio, e a partir daquele tempo, resolvi a estudar a música brasileira.

Você passou diversos anos no Recife, pesquisando a música local. De que forma esta experiência está presente em seus estudos acadêmicos sobre o Brasil e também em sua carreira como instrumentista?

Escrevi a minha tese de doutorado sobre o cavalo-marinho pernambucano (quem em breve será publicada no Brasil). A oportunidade de estudar uma tradição musical oral e de criar amizades com os músicos da zona da mata nordestina transformou minha relação com a música. Minha formação até aquele ponto tinha sido mais acadêmica do que “de rua”. Tinha tocado muito jazz e rock, mas eu estava começando a dar mais ênfase, no meu pensamento próprio, às idéias que estava absorvendo na universidade. Meu contato com as tradições musicais pernambucanas me permitiu a chegar a um equilíbrio entre o estudo acadêmico da música e a experiência direta da música. E ao longo dos anos conheci muitos amigos e colegas com quem estou ainda em contato.

Quais são seus referenciais acadêmicos sobre a música brasileira?

Uma parte da minha pesquisa do cavalo-marinho foi uma comparação entre a música que estava ouvindo em Pernambuco, entre 1990-91, com as gravações da Missão de Pesquisas Folclóricas, que Mário de Andrade organizou. Quando conclui que minha pesquisa foi insuficientemente “teórica”, pensei no motivo do Mário em “fornecer documentação para músico”. Tornei-me músico e musicólogo por amor à música, e não por amor à teoria.
No livro você propõe ao leitor três perspectivas analíticas.

Caso pudesse realizar um livro de maiores dimensões, modificaria este conceito?

Se eu fosse escrever um livro de maiores dimensões, gostaria de dar mais espaço à música da juventude em diversas regiões, tais como a MPB, o rock nacional, a relação entre a cultura e o meio-ambiente e a presença da música brasileira no palco mundial. No meu site coloquei muito material que foi cortado do livro.

O livro é destinado a um público não-brasileiro. Quais os cuidados que teve que tomar tendo isto em mente?

A música brasileira que mais se ouve nos EUA é o samba, a bossa nova e a MPB. Muita gente hoje em dia conhece Seu Jorge, por exemplo, porque apareceu num filme de Wes Anderson (“A vida aquática com Steve Zissou”, de 2004). Qualquer introdução à música brasileira tem que incluir este repertório canônico. Mas eu achei importante incluir a música nordestina, a indígena, a gaúcha, a caipira, o choro, a música da nova cena recifense e a música de Roberto Carlos, entre outras, para dar uma idéia mais ampla do assunto.

Na sua opnião, o que seu livro pode oferecer ao público brasileiro?

É óbvio que qualquer leitor brasileiro vai saber mais sobre um determinado assunto musical de que eu. Talvez seja interessante entrar em contato com a visão estrangeira de uma coisa que ele sabe muito bem, da mesma forma que eu gosto de ler as opiniões de Fred04, Renato Lins, Zé Teles, Siba, DJ Dolores ou Hermano Vianna sobre a música norte-americana.

Que paralelos poderia traçar entre a cultura musical popular norte-americana com a brasileira?

Nas minhas aulas da história do jazz, não apresento o jazz como uma coisa única, inédita, como escrevem muitos autores (um exemplo do chamado “American exceptionalism”). Mostro que os mesmos processos musicais e sociais que deram origem ao jazz – tais como a confluência de tradições musicais da África e da Europa, o improviso, a urbanização, a tecnologia de gravação – estavam presentes também nos no samba e no “son cubano”.